Sobre a Dona Rute

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Essa mulher de braços abertos é minha mãe, Dona Rute.

Nesse feriado do dia 07, ela escolheu a morte, porque a independência já não era possível.

Vinda lá de Santo Estevão, na Bahia, contava que na infância era farinha, água, feijão e muito sol na cabeça nos dias de roça.

A gente nunca vai saber como é isso.

Daí, no final da adolescência, a moça veio pra nossa terra prometida: mais uma das milhares de pretas arrumando a casa, as roupas, os filhos e um pouco da vida de gente que tinha dinheiro. Ela enriqueceu várias famílias.

Na época, o dia inteirinho era tomado pelo trabalho e o tempo dentro da condução para chegar da casa da patroa até o extremo sul da cidade.

“E o colchão de dormir era uma pedra”, ela dizia.

A gente nunca vai saber como é isso.

Mas a preta, além de valente, tinha uma vontade de viver e espalhar vida que, olha: era de dar gosto.

Eu soube que ela andava toda emperiquitada na praça, vestia roupa de patroa e uma peruca linda. Para as crianças da família, era tipo a Xuxa.

Numa dessas se engraçou com um baiano de Vitória da Conquista.

Reparem nesse nome: Vitória. Da Conquista.

Era pra ser isso o casamento, né? Não foi muito, não. Mas tudo bem, vieram “dois filhos lindos e PREfeitos”, ela dizia.

Eu fui a raspinha de tacho. Quando descobriu, ela já tinha 43 anos, e eu, cinco meses de vida.

Naquela época, ela era a tia do café no Cel Lep. Uma escola de línguas onde “Tinha ingrês, francêis e portuguêis", ela dizia.

Como é que se diz café em inglês, mãe? — Cófi. E chá? — Ti. E açúcar? — Xuga.

E caía na gargalhada.

Engraçado como esses momentos são clássicos que eu sei que não vou esquecer nunca.

Só tenho flashs de como foi a vida dela antes de eu vir ao mundo, mas, considerando as bebedeiras desde que eu era pequena, acho que não foi fácil.

Ainda assim, ela era marcante pela gargalhada e as histórias que faziam qualquer um rir.

“Nóis nunca viu Rute triste”, disseram na oração do velório.

Eu lembrei de “Maria, Maria”, interpretada pela Elis Regina. Acho que a música foi inspirada nela.

A gente ainda morava de aluguel lá no Parque Alto quando eu era pequena. Não lembro do cômodo, mas soube que teve uma época que ela deu abrigo pra um bando de irmãos. Cozinhava, passava e lavava pra todo mundo.

Não conhecia o significado da palavra machismo. Pra ela, era só bondade e amor ao próximo mesmo.

Desconfio que a gente não sabe muito bem o que é isso.

Sabe que só veio reclamar de uns anos pra cá?

“Eu cuidei de toda aquela gente e hoje ninguém vem me visitar”, ela dizia.

É de dar raiva, né? Mas ela também me ensinou uma coisa que é bem maior que isso: fazer o bem e não olhar a quem.

Ô coisa linda para se aprender, viu? Quando a gente pratica isso, o coração ilumina. Igualzinho quando eu ouvia o portão de casa abrir tarde da noite e corria para abraçá-la. Sempre tinha bolacha ou um chocolatinho na bolsa.

Enquanto eu crescia, rolou um montão de coisas difíceis em casa. Teve droga, hostilidade, solidão, desamor.

Ela afogou muita mágoa no álcool e queimou muita dor no cigarro. A luta diária seguia. E ela também, à frente de tudo, “tocando o barco” e sempre buscando melhoria onde dava.

Comprou um terreno. Construiu uma casa pra gente.

“Eu acendia a luz todo dia e me perguntava: será que isso é meu mesmo?”, ela dizia.

Hoje em dia a gente não se deslumbra com quase nada.

A escada foi feita à mão com a ajuda da minha madrinha. Sem nenhuma lição de engenharia, claro, pois ela só sabia escrever o próprio nome.

Quem é que podia estudar quando tinha que trazer o de comer pra casa?

E aquele montão de dívida pra pagar, que ela fazia questão de honrar uma por uma, afinal, “coisa mais bonita é você andar limpo da praça”.

Obrigada por mais uma lição, Dona Rute.

Teve muito arroz com feijão e bife aqui em casa, e mais um montão de comida que só ela sabia temperar de um jeito que fazia qualquer um repetir.

Isso eu não aprendi, que burrice a minha.

De uns quinze anos pra cá, depois de muita casa limpa, roupa lavada e passada com perfeição, filhos de patrão criados com educação, noites mal dormidas de preocupação, ajuda até a quem ela não tinha nenhuma ligação, vieram coisas muito boas também.

Eu cresci, parei de reclamar que só tinha um tênis e, aos quinze, comecei a trabalhar para comprar minhas coisas. Até me formei num negócio que ela não sabia para que servia (“comé que é mesmo, fia? publi, publi-ci-dade?”), mas tinha muito orgulho.

Meu irmão parou de dar trabalho e deu o maior presente que ela poderia ganhar: Kadu, que virou o xodó da vó e pelo qual ela soltava os sorrisos e choros mais sinceros. Ano passado veio até o Dudu, “coisa fofa da vó”, responsável pela alegria geral da casa.

A gente não era de conversar muito, mas se ela soubesse o tanto que aprendi apenas observando a sua luta, saberia que foi a minha melhor amiga anônima.

Vieram os últimos anos. Um AVC, uma prisão chamada cadeira de rodas, e a alegria se esvaindo aos poucos.

Quando vovó Baza morreu, há dois anos e meio, ela começou a contar sua própria hora também.

“Se Deus quiser logo, logo, eu vou pra perto de mamãe”, ela dizia.

A gente não esperava pela internação de nove meses. Uma feridinha no pé, uma pneumonia, DPOC, meses na UTI.

Um dia o médico me disse: “olha, é um caso muito complicado, a gente não espera muita coisa”.

E quando ela acordou: “a equipe inteira não acredita na força da sua mãe”.

É difícil acreditar mesmo.

Foi difícil pra mim. Questionei fé, destino, eu mesma, os outros.

Conheci a raiva absurda de ver alguém amado impossibilitado de fazer o que gosta.

Mas mesmo lá no hospital, ela fez amizades, provocou muitas risadas e virou o xodó da enfermaria, com seu “au au” brincalhão espalhado pelos corredores.

“Au au” era o seu “poxa, vida!” que servia para qualquer situação.

Foram 247 dias de luta até ela ir embora na última segunda.

E, nossa: como tá doendo!

Mas eu sei que tem muita lembrança feliz para, eventualmente, encobrir a dor e raiva latente. A saudade fica. Pra sempre.

Muita gente veio se despedir: os patrões, as amigas, primos de todo o canto, os seis irmãos, gente que foi acolhida e de alguma forma tocada por esse tal de ser Dona Rute.

Eu não sou lá muito mística, mas aquele sol abrindo depois de tanta chuva logo depois do último adeus pareceu uma poesia natural saudando a guerreira.

Eu aprendi tanto com a história da minha mãe, que precisava forçar a memória e contar um pouco do que lembro. Assim, quem sabe, ela faça alguma diferença para quem está lendo também.

Dona / tia / prima / irmã / amiga / mamãe Rute abriu os braços para muita gente em sua jornada. Provocou mudanças eternizadas pelas lágrimas de todo aquele povo em comboio atrás das flores, e de tantos outros que não puderam estar lá.

A vida não é isso? Uma colagem de pessoas que a gente toca e coisas que a gente transforma.

A colagem dela é a melhor que eu já vi até agora.

Au au, mamãe, muito obrigada.

Missão cumprida.

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