Revelação Contrária

Sua “caneta” digital não se movia há dias. De tão inutilizadas, as teclas de seu teclado eram agora um tapete muito convidativo à poeira já inerente do escritório. Não tinha nada na cabeça e isso o perturbava como nunca. Desde que entrara naquela sala pela primeira vez, seu ofício era pensar: e fazer com que seus leitores se identificassem com seu sentimento forjado e suas idéias de uma vida melhor propositalmente comerciais e irresistíveis. O cursor piscava desesperadamente na tela do monitor – também empoeirado – como se dissesse: “Mova-se, mova-me.” inúmeras vezes. Há anos fora incumbido de desenhar com palavras o caminho para a felicidade dos outros, e isso (pensara inocentemente) lhe serviria como base para o traçado de sua própria felicidade. Coitado. Escondeu o rosto em suas mãos, esperando que o vazio dos olhos lhe mostrasse a luz que lhe daria o reconhecimento do dia seguinte. Foi em vão. Digitou ao menos 15 vezes a mesma palavra: “pense” , numa tentativa de indução do cérebro pela repetição.. Acordou. Então era isso : a repetição, não! A mudança ! A robótica de suas ações havia, inevitavelmente, enferrujado. Ocorreu-lhe então que as palavras que tanto buscava não podiam ser descobertas sem que ele mudasse o curso de seu raciocínio, justamente a novidade lhe proporcionaria estabilidade, e a mudança lhe traria bonança. Naquele momento de revelação, seu computador apagou junto com a luz geral do prédio, lamentou não poder colocar sua claridade mental espontânea em ação de imediato, mas sabia que ela seria durável o suficiente para que ele voltasse ao escritório pela manhã e limpasse de bom grado seu teclado empoeirado. Seria então o que havia sido há 47 anos: novo.

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