Miniconto 75* - Duendes
- Gessica Borges
- Minicontos
- February 26, 2010
Não acreditava em duendes do amor até o dia em que se apaixonou por um anão.
Não acreditava em duendes do amor até o dia em que se apaixonou por um anão.
“ […] Ela fitou João, incrédula, e disse: — Mas, casar? — Casar. — Hmmm, só com casa. — Casa? — Pra casar, ué. — Se casar, vai coser? — Casualmente. — Êêê, sua Coisa! — Coisa, é?! — … — Assim não caso. — Ah! Casa, vai?! … — Tá bem, caso. Se… — Qual coisa? — A casa. — Cozinhar? — Caso sério… — Cacete! Não me dá coisa nenhuma? — Uma coisa. — ? — Cu. — Casaremos! — Com casa? — Com tudo!” Malu terminou de ler, fechou o livro, se recostou na cama, e constatou com tristeza: — Meu Deus, que coisa machista. Hugo, que tinha lido o mesmo texto minutos antes e achado engraçado, apenas disse: — Pois é. E você vê, né… escrito por uma mulher. Tá vendo como é? — Isso também é machista, Hugo. Machista e sexista, aliás. — O quê? — Atribuir características negativas necessariamente ao sexo feminino. Se fosse um homem o autor do texto, você provavelmente não teria dito isso. É a mesma lógica de “mulher no volante, perigo constante” e outras tantas asneiras machistas. — Nossa, Malu, eu só fiz um comentário. Deixa de ser doida, paranoica. Tudo pra você é motivo de discussão. — Gaslighting. — O quê? — Isso que você está fazendo. É gaslighting. Um termo em inglês que explica como abusadores, majoritariamente homens, distorcem e desacreditam o que mulheres dizem, querendo que elas duvidem da própria memória e sanidade. Não é à toa a nossa fama de histéricas. Mais um joguinho do patriarcado pra manter a gente sob controle. — Nossa senhora. Lá vem! Então tudo que eu disser agora é machismo?! — Eu não disse isso, Hugo. A gente mal começa a conversar e você já perde a paciência. Por que será? Mulher é tudo burra, né? Deve ser difícil descobrir que você faz parte da escória masculina. E o machismo nosso de cada dia? Não pode. Não pode mais elogiar a coleguinha gostosa da firma. Não pode mais fiu-fiu. Se chegar em casa e não tiver comida pronta e roupa lavada, não pode mais reclamar. Também não pode… — Ai, Malu. Chega! Você me cansa. Tá vendo como você é louca? Você tem que entender, é natural mulher fazer as coisas de casa, Deus fez cada um de um jeito… — Lá vem você com o mansplaining! Tem que explicar tudinho, até desenhar, pra ver se eu entendo, né? Um mais um é dois. O sol é redondo. Homem é forte e mulher é fraca… sempre a mesma ladainha. Qual a próxima babaquice que vai sair da sua boca? — Tô achando melhor eu ficar quieto. Não dá para discutir com você assim. Não vamos chegar a lugar nenhum. — Esse é justamente o problema, Hugo! Ultimamente a gente quase não conversa. Tudo que eu falo parece exagero, parece briga. Faz um exercício: imagina você ter nascido mulher. Sempre gorda demais ou magra demais. Atirada demais ou se faz de sonsa. Se a roupa é curta, vadia. Se é longa, brega ou crente do rabo quente. Se o cara erra, ele é filho da puta. Veja bem, o filho, porque a puta ninguém quer ser, né? Aí toda vez que eu tento falar disso, você me interrompe, diz que não é bem assim, quer me explicar que o mar é azul. Caralho! É ou não é pra ficar possessa? Tenho que colocar pra fora mesmo! Até ver se algo do que eu falo entra na sua cabeça! — … — Vai ficar quieto dessa vez? Não vai dizer nada? — … Você até que é uma mulher inteligente.
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Os olhos dela estão arroxeados A gaze na boca reflete a morbidez do quarto de UTI Ela não responde, o pulmão muito menos Ao sair de lá, ajeito o meu black power recém-assumido no espelho, como se não tivesse morrendo por dentro24Mesmo ofegante eu entendo o que ela pede “Ai ai ai” “ Me dá..” O que, mãe? “Vida.”23O ano passa tão rápido que a minha memória não tem tempo de fotografar tudo Era o amor da minha vida ali atrás? Era um trabalho apenas para pagar as contas ali na frente? Era a cadeira de rodas dela emperrando ali no meio? Era eu em algum momento?22Ufa!Formada. A vida mais cada vez mais bagunçada Só conheço o significado de três palavras: Inércia Angústia Desespero Que esse 13 acabe logo Espero…21Último ano da faculdade Aí, no ano que vem… Mas esse ano, AVC. Ai. Traição. Ai. TCC. Ai. Subo no palco do auditório com o grupo para receber o prêmio pelo trabalho. De novo: orgulho de quem eu sou?20Eu trabalho para uma instituição que lucra 5 bi/ano enganando pessoas e acredito que o meu TCC mudará minha vida.19Alô? Oi, tia. Não, foi mais uma convulsão. Não sei, tia. Tô esperando o médico. Não, não vou trabalhar hoje. Sei lá… invento uma desculpa.18Eu choro descontroladamente ao ganhar a bolsa Publicidade. De graça. Caraca, isso vai mudar a minha vida. Ninguém da minha família entende o orgulho. o.v.e.l.h.a.n.e.g.r.a.17Adolescência, que merda.16Uma semana de namoro e, nossa, eu sou a garota mais feliz do mundo. Ele diz que é apaixonado pela minha melhor amiga. Dá pra morrer de amor? Foco no trabalho e resto só Deus sabe.15Ele é o cara mais inteligente que eu já conheci. Tô apaixonada. A gente conversa sobre nanotecnologia enquanto o sereno cai e eu viajo olhando as luzes do posto de gasolina. Como será beijar um cara? Começo a escutar rock n’ roll. A paraninfa da turma me entrega troféu de melhor aluna do curso e eu sei que aquele é o começo da minha carreira brilhante.14Passo pelo dedo pela lista e meu coração dispara porque não estou entre as Jéssicas. Ah, calma, são 3 letras pra cima. Gessica. Correia. Borges. Eu começo a chorar porque vou começar um curso que pode resultar no meu primeiro emprego e, quem sabe, orgulhar pra valer a minha família.13Álcool e outras drogas correm pelas veias do meu pai, mãe e irmão. Acho que o efeito é mais forte em mim do que neles.12Minha mãe não foi trabalhar hoje. Eu finjo que ela não está dormindo totalmente bêbada no quarto enquanto eu e meus amigos fazemos trabalho na sala. Minha madrinha passa uma química no meu cabelo pra ficar mais fácil de pentear. Eu sinto menos vergonha dele agora.11Primeiro dia na nova escola. Não tenho uma roupa nova pra ir. Na entrada, todo mundo olha estranho pra minha calça peluda e meu cabelo crespo com chiquinhas. Levanto a mão toda hora pra responder as perguntas da professora e, bingo, acharam a CDF da sala.10Na última reunião do ano, a professora diz que eu estou a frente dos colegas e jura que darei muito certo. Mamãe está bêbada e desvia o assunto.09Os dois não param de gritar. “Sua ordinária, filha da puta” ‘Seu vagabundo descarado” Eu tento gritar mais alto pedindo pra eles pararem. Ninguém me escuta nessa casa. Subo pra laje pra chorar sozinha.08Ela não conseguiu levantar pra ir à primeira reunião do ano na escola e eu encontro camisinhas na mala do meu pai, mas eles já não estão juntos há anos.07Uns caras vieram aqui no portão hoje cobrar os cheques sem fundo que meu irmão passou pra usar droga. Minha mãe me carrega pela mão pelas ruas do bairro, acho que está procurando ele, mas não entendo direito.07Primeiro mês da primeira série e a professora me transfere pra segunda série, porque eu acabo as tarefas muito rápido e durmo o resto da aula. Na sala, um menino branco me alopra todos os dias: pela minha idade, pela minha cor, pelo meu cabelo desgrenhado, pelos meus dentes tortos e orelha de abano. Ainda bem que eu achei um canto pra ficar sozinha às vezes. A escola não tem uniforme, mas eu tenho. É a única roupa nova do ano.06Fizeram uma festinha de aniversário pra mim. Na hora do parabéns eu escondo o rosto pra chorar porque tô com vergonha dos meus pais, que estão muito bêbados.05Ele me parou no corredor e me abraçou de um jeito estranho. Senti sua mão correr por uma parte que eu sabia que não era permitida e saí correndo. Nunca vou falar disso com ninguém.04Minha mãe tá me carregando pelo colo e andando apressado em direção à avenida escura. Acho que meu pai chegou louco em casa.03 02 01 044 anos? Grávida? Rute, Rute … você precisa parar de fumar. Essa menina já é um milagre.
Read More— Casar? — Casar. — Só com casa. — Casa? — Pra casar. — Se casar, vai coser? — Casualmente. — Sua coisa.. — Coisa? — … — Assim não caso. — Ah…!. casa…? — Caso. Se.. — Que coisa? — A casa. — Cozinhar? — Caso sério… — Cacete! Coisa nenhuma? — Uma coisa. — ? — C* — Casaremos. — Com casa? — Com tudo!
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