Carinhoso

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Ele cantarolou Pixinguinha a manhã inteira. Arrumou a cama, tirou o pó da estante de livros, limpou o banheiro com desinfetante de lavanda, colocou as roupas na máquina e preparou o almoço, ninando a abóbora ao som de Rosa. Estátua majestosa.

Depois de almoçar, lavar e guardar a louça, assistiu o jornal da tarde e tirou um cochilo. Acordou para um banho e um bom moletom. O perfume da vez era cítrico. Ao sair, virou a chave quatro vezes, para garantir. O encontro com Leco estava combinado às catorze, no posto de saída da Rua 19.

Quando chegou, ela ainda estava lá. Escondida entre galões estocados num canto. Encaixou-a com cuidado na cueca, ao lado direito do pênis. Minutos depois, Leco buzinou duas vezes, e ele embarcou no banco do passageiro.

Não teve papo no caminho e, ao entrar no restaurante, tudo aconteceu muito rápido. Todos do chão. Quietinhos. Vai, moça, eu quero só o dinheiro. Leco mira os clientes. Vários com boca cheia, olhos de desespero. A moça ia pegando o papel do caixa e depositando no saco verde e amarelo com as duas mãos. Habilidade e cabeça baixa.

Então ele decidiu checar a área. Leitura dinâmica, como de costume. Viu a criança. O coração bateu feliz não-sei-porquê. Foi até a menina com o cuidado de esconder a arma. Ninguém se mexia. O cafuné foi sincero e o sorriso esforçado. Sob os seus dedos, ela só estremeceu um pouco. Calma, linda, não vou fazer nada com você.

Nem ele nem o Leco perceberam a Juíza lá no fundo. Não deu tempo de assimilar o estampido, nem os gritos, nem o choro instantâneo da garota. O encontro dos joelhos com o chão fez um barulho oco, mas Leco não ouviu, já cruzando a porta.

Na redação do jornal, pairou a dúvida em publicar a versão Preto & Pólvora.

E aí, chefe, sessão Cotidiano?

Não, bora variar um pouco. Foca no carinho.

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Texto baseado na manchete:

Criminosos invadem restaurante e ‘acalmam’ criança com carinho” Globo.com, 02/08/2016.

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