“ […] Ela fitou João, incrédula, e disse:
— Mas, casar?
— Casar.
— Hmmm, só com casa.
— Casa?
— Pra casar, ué.
— Se casar, vai coser?
— Casualmente.
— Êêê, sua Coisa!
— Coisa, é?!
— … — Assim não caso.
— Ah! Casa, vai?! …
— Tá bem, caso. Se…
— Qual coisa?
— A casa.
— Cozinhar?
— Caso sério…
— Cacete! Não me dá coisa nenhuma?
— Uma coisa.
— ?
— Cu.
— Casaremos!
— Com casa?
— Com tudo!”
Malu terminou de ler, fechou o livro, se recostou na cama, e constatou com tristeza:
— Meu Deus, que coisa machista.
Hugo, que tinha lido o mesmo texto minutos antes e achado engraçado, apenas disse:
— Pois é. E você vê, né… escrito por uma mulher. Tá vendo como é?
— Isso também é machista, Hugo. Machista e sexista, aliás.
— O quê?
— Atribuir características negativas necessariamente ao sexo feminino. Se fosse um homem o autor do texto, você provavelmente não teria dito isso. É a mesma lógica de “mulher no volante, perigo constante” e outras tantas asneiras machistas.
— Nossa, Malu, eu só fiz um comentário. Deixa de ser doida, paranoica. Tudo pra você é motivo de discussão.
— Gaslighting.
— O quê?
— Isso que você está fazendo. É gaslighting. Um termo em inglês que explica como abusadores, majoritariamente homens, distorcem e desacreditam o que mulheres dizem, querendo que elas duvidem da própria memória e sanidade. Não é à toa a nossa fama de histéricas. Mais um joguinho do patriarcado pra manter a gente sob controle.
— Nossa senhora. Lá vem! Então tudo que eu disser agora é machismo?!
— Eu não disse isso, Hugo. A gente mal começa a conversar e você já perde a paciência. Por que será? Mulher é tudo burra, né? Deve ser difícil descobrir que você faz parte da escória masculina. E o machismo nosso de cada dia? Não pode. Não pode mais elogiar a coleguinha gostosa da firma. Não pode mais fiu-fiu. Se chegar em casa e não tiver comida pronta e roupa lavada, não pode mais reclamar. Também não pode…
— Ai, Malu. Chega! Você me cansa. Tá vendo como você é louca? Você tem que entender, é natural mulher fazer as coisas de casa, Deus fez cada um de um jeito…
— Lá vem você com o mansplaining! Tem que explicar tudinho, até desenhar, pra ver se eu entendo, né? Um mais um é dois. O sol é redondo. Homem é forte e mulher é fraca… sempre a mesma ladainha. Qual a próxima babaquice que vai sair da sua boca?
— Tô achando melhor eu ficar quieto. Não dá para discutir com você assim. Não vamos chegar a lugar nenhum.
— Esse é justamente o problema, Hugo! Ultimamente a gente quase não conversa. Tudo que eu falo parece exagero, parece briga. Faz um exercício: imagina você ter nascido mulher. Sempre gorda demais ou magra demais. Atirada demais ou se faz de sonsa. Se a roupa é curta, vadia. Se é longa, brega ou crente do rabo quente. Se o cara erra, ele é filho da puta. Veja bem, o filho, porque a puta ninguém quer ser, né? Aí toda vez que eu tento falar disso, você me interrompe, diz que não é bem assim, quer me explicar que o mar é azul. Caralho! É ou não é pra ficar possessa? Tenho que colocar pra fora mesmo! Até ver se algo do que eu falo entra na sua cabeça!
— …
— Vai ficar quieto dessa vez? Não vai dizer nada?
— … Você até que é uma mulher inteligente.